Photo by: Gleydson Virgulino
Portal interdimensional? Liturgia cerimonial? Transe coletivo? Muito mais que uma festa protocolar do calendário católico, o carnaval no Brasil é um emaranhado estético e político extremamente complexo, em que a sociedade celebra e dança suas contradições, dores e belezas, a partir de um pacto social - e poético - que se fez inevitável ao longo da nossa história e hoje é um dos principais símbolos de uma inteligência originalmente brasileira.
É difícil explicar para alguém que nunca viveu o carnaval nestas terras a força de arrebatamento que, todo ano, assinala uma espécie de ritual básico de renovação, no início do ano: são quatro dias sagrados, embebidos numa atmosfera de sonho, em que nada é proibido e tudo é permitido. Os tambores tomam de assalto o espaço público, re-estabelecem a conexão com os espíritos da rua, através de suas gramáticas ancestrais, seus alfabetos não verbais. Os corpos em polvorosa, seminus, dançam, suam, riem e choram, numa intensidade de sentimentos cheia de libido e pulsão de vida.
By: Navio Pirata 2024, BaianaSystem , Anderson Carvalho
O carnaval mistura e reorganiza tudo a partir do caos, como um grande liquidificador criativo que catalisa o surgimento de novas visões, novas perspectivas. E apesar dos movimentos de elitização da festa ao longo da história, é importante lembrar que o carnaval é filho das ruas. Ecoa, portanto, muito mais a voz dos trabalhadores do que dos patrões. É uma manifestação popular, e não se separa da resistência, pelo contrário: alimenta-se dela. Desde sempre, "a festa e a luta são irmãs", como nos lembra o professor Luiz Antonio Simas.
By: Raiana Pires
Mas há, claro, quem torça o nariz e diga que é coisa de gente desocupada: esses, coitados, não entenderam nada. Porque pra além da gigantesca dimensão econômica da festa, que alimenta toda uma indústria onde milhares de trabalhadores garantem seu ganha-pão, o carnaval é também - e principalmente - um trabalho psicomágico coletivo, uma grande feitiçaria sincrética, tipicamente brasileira. Como uma fenda lírica no espaço-tempo, em que os traumas do nosso passado colonial, de escravidão e estratificação social, conquistam uma nova chance para se rearmonizar, ainda que brevemente, a partir das águas que se movimentam nessa gira.
Porque sim, o carnaval é uma gira de águas, de emoções: uma roda onde nossas ancestralidades são convocadas, e os enredos se desenham num entrelaçamento muito sábio entre o sagrado e o profano. É um festejo rezado e uma reza festejada. Como uma espécie de medicina da cultura, decantada durante os séculos de opressão colonial, e que entretanto fez germinar uma avançada tecnologia para o bem viver. Um saber que permite ao povo dançar com a dimensão trágica da vida, e superá-la através do milagre da alegria.
By: Glaydson Virgulino, Rafael Paz
É como sintetizam os versos de Caetano: "o samba é pai do prazer / o samba é filho da dor / o grande poder transformador". O carnaval opera justamente nessa linha tênue. Percebê-lo como um dispositivo de conhecimento ancestral profundo, um patrimônio imaterial essencial para a experiência humana no planeta, é a grande sacada. Daquelas tecnologias copyleft, que desejamos que possam servir também à cura de outras sociedades, em outros territórios. Laroyê!
Texto: Alyne Emanuella Silva e Luiz Gabriel Lopes
Tradução: Daniel Vizentini
A associação cultural brasileira Adalu acredita na força e no valor do carnaval brasileiro como forma de encantamento e de reconstrução de um sentido coletivo de vida.
Este ano, a Adalu celebra a quinta edição do “Tropikaos”: no dia 14 de março, a partir das 20h30, no Moods, com diversas apresentações musicais, de dança e visuais.
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